Hit the world road

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Um Segredo de um Casamento Feliz - Miguel Esteves Cardoso

Desde que a Maria João e eu fizemos dez anos de casados que estou para escrever sobre o casamento. Depois caí na asneira de ler uns livros profissionais sobre o casamento e percebi que eu não percebo nada sobre o casamento. Confesso que a minha ambição era a mais louca de todas: revelar os segredos de um casamento feliz. Tendo descoberto que são desaconselháveis os conselhos que ia dar, sou forçado a avisar que, quase de certeza, só funcionam no nosso casamento. Mas vou dá-los à mesma, porque nunca se sabe e porque todos nós somos muito mais parecidos do que gostamos de pensar. O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam. O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade. Quando esse filho é amado por ambos os casados - que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram. O nosso casamento é uma cultura secreta de hábitos, métodos e sistemas de comunicação. Todos foram criados do zero, a partir do material do eu e do tu originais. Foram concordados, são desenvolvidos, são revistos, são alterados, esquecidos e discutidos. Mas um casamento feliz com dez anos, tal como um filho de dez anos, tem uma personalidade mais rica e mais bem sustentada, expressa e divertida do que um bebé com um ano de idade. Eu só vivo desta maneira - que é o nosso casamento - vivendo com a Maria João, da maneira como estamos um com o outro, casados. Nada é exportável. Não há bocados do nosso casamento que eu possa levar comigo, caso ele acabe. O casamento é um filho carente que dá mais prazer do que trabalho. Dá-se de comer ao bebé mas, felizmente, o organismo do bebé é que faz o trabalho dificílimo, embora automático, de converter essa comida em saúde e crescimento. Também o casamento precisa de ser alimentado mas faz sozinho o aproveitamento do que lhe damos. Às vezes adoece e tem de ser tratado com cuidados especiais. Às vezes os casamentos têm de ir às urgências. Mas quanto mais crescem, menos emergências há e melhor sabemos lidar com elas. Se calhar, os casais apaixonados que têm filhos também ganhariam em pensar no primeiro filho que têm como sendo o segundo. O filho mais velho é o casamento deles. É irmão mais velho do que nasce e ajuda a tratar dele. O bebé idealmente é amado e cuidado pela mãe, pelo pai e pelo casamento feliz dos pais. Se o primeiro filho que nasce é considerado o primeiro, pode apagar o casamento ou substitui-lo. Os pais jovens - os homens e as mulheres - têm de tomar conta de ambos os filhos. Se a mãe está a tratar do filho em carne e osso, o pai, em vez de queixar-se da falta de atenção, deve tratar do mais velho: do casamento deles, mantendo-o romântico e atencioso. Ao contrário dos outros filhos, o primeiro nunca sai de casa, está sempre lá. Vale a pena tratar dele. Em contrapartida, ao contrário dos outros filhos, desaparece para sempre com a maior das facilidades e as mais pequenas desatenções. O casamento feliz faz parte da família e faz bem a todos os que também fazem parte dela. Os livros que li dão a ideia de que os casamentos felizes dão muito trabalho. Mas se dão muito trabalho como é que podem ser felizes? Os livros que li vêem o casamento como uma relação entre duas pessoas em que ambas transigem e transaccionam para continuarem juntas sem serem infelizes. Que grande chatice! Quando vemos o trabalho que os filhos pequenos dão aos pais, parece-nos muito e mal pago, porque não estamos a receber nada em troca. Só vemos a despesa: o miúdo aos berros e a mãe aflita, a desfazer-se em mimos. É a mesma coisa com os casamentos felizes. Os pais felizes reconhecem o trabalho que os filhos dão mas, regra geral, acham que vale a pena. Isto é, que ficaram a ganhar, por muito que tenham perdido. O que recebem do filho compensa o que lhe deram. E mais: também pensam que fizeram bem ao filho. Sacrificam-se mas sentem-se recompensados.Num casamento feliz, cada um pensa que tem mais a perder do que o outro, caso o casamento desapareça. Sente que, se isso acontecer, fica sem nada. É do amor. Só perdeu o casamento deles, que eles criaram, mas sente que perdeu tudo: ela, o casamento deles e ele próprio, por já não se reconhecer sozinho, por já não saber quem é - ou querer estar com essa pessoa que ele é. Se o casamento for pensado e vivido como uma troca vantajosa - tu dás-me isto e eu dou-te aquilo e ambos ficamos melhores do que se estivéssemos sozinhos -, até pode ser feliz, mas não é um casamento de amor. Quando se ama, não se consegue pensar assim. E agora vem a parte em que se percebe que estes conselhos de nada valem - porque quando se ama e se é amado, é fácil ser-se feliz. É uma sorte estar-se casado com a pessoa que se ama, mesmo que ela não nos ame. Ouvir um casado feliz a falar dos segredos de um casamento feliz é como ouvir um bilionário a explicar como é que se deve tomar conta de uma frota de aviões particulares - quantos e quais se devem comprar e quais as garrafas que se deve ter no bar, para agradar aos convidados. Dirijo-me então às únicas pessoas que poderão aproveitar os meus conselhos: homens apaixonados pelas mulheres com quem estão casados. E às mulheres apaixonadas pelos homens com quem estão casadas? Não tenho nada a dizer. Até porque a minha mulher continua a ser um mistério para mim. É um mistério que adoro, mas constitui uma ignorância especulativa quase total. Assim chego ao primeiro conselho: os homens são homens e as mulheres são mulheres. A mulher pode ser muito amiga, mas não é um gajo. O marido pode ser muito amigo, mas não é uma amiga. Nos livros profissionais, dizem que a única grande diferença entre homens e mulheres é a maneira como "lidam com o conflito": os homens evitam mais do que as mulheres. Fogem. Recolhem-se, preferem ficar calados. Por acaso é verdade. Os livros podem ser da treta mas os homens são mais fugidios. Em vez de lutar contra isso, o marido deve ceder a essa cobardia e recolher-se sempre que a discussão der para o torto. Não pode ser é de repente. Tem de discutir (dizê-las e ouvi-las) um bocadinho antes de fugir. Não pode é sair de casa ou ir ter com outra pessoa. Deve ficar sozinho, calado, a fumegar e a sofrer. Ele prende-se ali para não dizer coisas más. As más coisas ditas não se podem desdizer. Ficam ditas. São inesquecíveis. Ou, pior ainda, de se repetirem tanto, banalizam-se. Perdem força e, com essa força, perde-se muito mais. As zangas passam porque são substituídas pela saudade. No momento da zanga, a solidão protege-nos de nós mesmos e das nossas mulheres. Mas pouco - ou muito - depois, a saudade e a solidão tornam-se insuportáveis e zangamo-nos com a própria zanga. Dantes estávamos apenas magoados. Agora continuamos magoados mas também estamos um bocadinho arrependidos e esperamos que ela também esteja um bocadinho. Nunca podemos esconder os nossos sentimentos mas podemos esconder-nos até poder mostrá-los com gentileza e mágoa que queira mimo e não proclamação. Consiste este segredo em esperar que o nosso amor por ela nos puxe e nos conduza. A tempestade passa, fica o orgulho mas, mesmo com o orgulho, lá aparece a saudade e a vontade de estar com ela e, sobretudo, empurrador, o tamanho do amor que lhe temos comparado com as dimensões tacanhas daquela raivinha ou mágoa. Ou comparando o que ganhamos em permanecer ali sozinhos com o que perdemos por não estar com ela. Mas não se pode condescender ou disfarçar. Para haver respeito, temos de nos fazer respeitar. Tem de ficar tudo dito, exprimido com o devido amuo de parte a parte, até se tornar na conversa abençoada acerca de quem é que gosta menos do outro.Há conflitos irresolúveis que chegam para ginasticar qualquer casal apaixonado sem ter de inventar outros. Assim como o primeiro dever do médico é não fazer mal ao doente, o primeiro cuidado de um casamento feliz é não inventar e acrescentar conflitos desnecessários. No dia-a-dia, é preciso haver arenas designadas onde possamos marrar uns com os outros à vontade. No nosso caso, é a cozinha. Discutimos cada garfo, cada pitada de sal, cada lugar no frigorífico com desabrida selvajaria. Carregamos a cozinha de significados substituídos - violentos mas saudáveis e, com um bocadinho de boa vontade, irreconhecíveis. Não sabemos o que representam as cores dos pratos nas discussões que desencadeiam. Alguma coisa má - competitiva, agressiva - há-de ser. Poderíamos saber, se nos déssemos ao trabalho, mas preferimos assim. A cozinha está encarregada de representar os nossos conflitos profundos, permanentes e, se calhar, irresolúveis. Não interessa. Ela fornece-nos uma solução superficial e temporária - mas altamente satisfatória e renovável. Passando a porta da cozinha para irmos jantar, é como se o diabo tivesse ficado lá dentro. Outro coliseu de carnificina autorizada, que mesmo os casais que não podem um com o outro têm prazer em frequentar, é o automóvel. Aí representamos, através da comodidade dos mapas e das estradas mesmo ali aos nossos pés, as nossas brigas primais acerca das nossas autonomias, direcções e autoridades para tomar decisões que nos afectam aos dois, blá blá blá. Vendo bem, os casamentos felizes são muito mais dramáticos, violentos, divertidos e surpreendentes do que os infelizes. Nos casamentos infelizes é que pode haver, mantidas inteligentemente as distâncias, paz e sossego no lar.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A Portugalite - Miguel Esteves Cardoso

Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.

A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.

Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».

Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.

Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hão-de fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprime-se no dogma nacional que reza «Isto é bom é para os turistas», como quem diz «A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente». Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.

Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.»

Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.

Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...»

Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»)

Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...»

É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Igual-Desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias de banda desenhada são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todos os sonetos epoemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho ímpar.


Carlos Drummond de Andrade