Hit the world road

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O coleccionador

Atravessou a infância com a colecção mais preciosa que se possa ter: um coração a transbordar de atenção, um corpo cheio de mimo e abraços apertados, uma alma a crescer com amor, afecto e bondade.


Educou-se com uma colecção de quadros de honra, louvores de professores, diplomas, prémios e reconhecimentos publicos. A esta colecção, acrescentou sólidos amigos, fortes raízes que se estenderiam pela vida fora.


Criou família, e nova colecção se juntou. Uma colecção pequenina mas presente, cheia de esperança e de orgulho.Uma colecção inevitável, previsivel, necessária.


Seguiu-se-lhe a glória da maturidade. Somou bens, propriedades, rumos. E adicionou viagens a sitios longinquos, ganhando conhecimentos novos, culturas distintas. Condimentou com arte e musica, muita musica.


As colecções tornaram-se cada vez mais preciosas, mantendo cada uma delas únicas e em perfeito estado de contemplação e satisfação pessoal. Nada perturbava este equilibrio singular de conquista, bem-estar, conforto. A vida proporcionava-lhe o que tinha de melhor pelo seu esforço e dedicação.

Qunando a vida se atropelou e a rotina se instaurou, começou a coleccionar mulheres. Bonitas, menos bonitas, espertas, atrevidas, timidas, modernas, conservadoras, descontraidas, preconceituosas ... a colecção era fantástica! Digna de admiração de qualquer ser, homem ou mulher.

Mas um dia, o coleccionador deixou de ter desafios. Todas as colecções estavam completas, mas mortas. Presentes, mas impossiveis de tocar, sob pena de se esvaiarem em pó. Arrumadas na memória do seu dono, mas sem valor, sem vida, sem gozo. Não faltavam peças, mas o coração estava vazio, sem sentido, sem destino.

O ciclo fechava-se a pouco e pouco. O coleccionador percorria o seu mundo sózinho e dizia que se bastava a si próprio, com uma dor surda a bater-lhe no peito. Nada o demovia da sua cegueira por tanta responsabilidade e tanto trabalho de vida suado. Isolava-se, fugia de si e dos outros, refugiou-se dentro de si e cristalizou no tempo.


Acordou um dia, sem saber como nem porquê, no meio de um deserto. Com tanto para dar e só. Muito só. À volta, os ventos reconstruiam dunas e o deserto quase respirava. O calor exterior, insuportável, da vida real despertou o coleccionador.

Percebeu, ainda que tarde que nem tudo estava perdido. Desmanchou devagarinho cada colecção, quebrando os encantos associados, limpou peça a peça redistribuindo a quimera acumulada e recomeçou a caminhar para a vida com as mãos vazias, o coração limpo e a alma por cima a cantar, cada vez mais alto em direção ao sol, lá em cima. Era novamente feliz.